Um basta ao individualismo

Escola Ágora

Escola Ágora

A sociedade contemporânea assiste, entre perplexa e temerosa, a uma sucessão de transformações que ocorrem com tal rapidez que não nos permitem ser incorporadas e digeridas. Fica-se tomado por uma sensação de mal estar após a leitura de um jornal, ou ao se assistir aos noticiários da tevê.

Nas ruas, que percorremos sempre em guarda, não nos chocamos tanto ao ver a criança miserável, o deficiente físico “costurando” o fluxo dos automóveis com sua cadeira de rodas. Estamos anestesiados. Em parte, esse sentimento foi desenvolvido para dar conta de nossa sobrevivência. Porém, o episódio dos rapazes de Brasília (considerados pessoas integradas à sociedade), que queimaram o índio para “dar um susto nele, pensando que fosse um mendigo”, ou dos jovens americanos que mataram os entregadores de pizza “para sentir como era” ou, ainda, de filhos que viram notícias das páginas policiais porque mataram os pais, sob as mais diversas justificativas, para não falar nos radicais que não aceitam as diferenças de raça ou crença, causam em nós algo que vai além da perplexidade ou do temor.

É evidente que alguns casos não podem ser tomados como comportamento generalizado. Mas, não nos esqueçamos, que novos paradigmas não se apresentam de forma maciça, são situações isoladas, que vão dando forma e encaminhamento às mudanças sociais.

Os jovens, sempre vistos como os construtores do futuro, são os personagens centrais desses acontecimentos. Perdeu-se o sentido de comunidade? Esvaneceu-se o sentido de humanidade?

Para ajudar a iluminar a necessária reflexão sobre isso, há uma obra que me parece de grande importância. É “Greater Expectations – overcoming the Culture of Indulgence in America’s Homes and Schools”- que poderia ser traduzida como “Melhores Expectativas – Superando a Cultura da Indulgência nos Lares e Escolas Americanas” de William Damon. Damon é professor da Faculdade de Educação da Brown University, além de dirigir o Centro de Estudos do Desenvolvimento Humano, na mesma universidade.

Ele se contrapõe, de maneira clara e consistente, a alguns mitos da educação moderna. Partindo de uma fábula em que descreve um futuro bem próximo sem valores culturais, de relações hostis, Damon vai apontando e desmontando os enganos de nossa época, no que diz respeito à formação que se dá a nossos filhos e alunos e encerra seu livro com outra fábula, esta bem mais esperançosa, em que fala da recuperação desses valores, da reconstrução das comunidades, com base na cooperação.

Logo ao nascer, um bebê recebe sua primeira herança – o lar que o acolhe. A palavra herança, do latim “haerentia”, significa adesão. Isso quer dizer que essa criança foi recebida em sua primeira comunidade, à qual ela se uniu, passando a viver uma relação dual, a conviver. Durante seu crescimento, ela passa a identificar-se com o núcleo familiar ao qual pertence. Creio que esses poucos passos, que percorreram mais o caminho da etimologia que quaisquer outros já são suficientes para demonstrar a influência da família na formação do ser humano. Herança, adesão, união, convivência, identidade, são, portanto, valores fundamentais para o nosso reconhecimento.

Há não muito tempo, neste mesmo século, era tarefa trabalhosa garantir o funcionamento de uma casa. Simples atividades, como cuidar das roupas, demandavam tempo e várias etapas de execução. As crianças, mesmo que muito pequenas, já incorporavam a concepção do trabalho comunitário – várias pessoas realizando ações cujos resultados se revertiam em benefícios de todos. Quando atingiam idade para ajudar, começavam a fazer pequenas tarefas. Os momentos de lazer, vividos dentro de casa, convidavam à conversa, ao relato de histórias (muitas vezes, a da própria família). A dinâmica do lar era partilhada, então, através da comunicação entre as pessoas.

Com o desenvolvimento da tecnologia, a “mágica” de apertar botões tomou o lugar dos demorados processos de execução das tarefas. Viver um processo supõe planejamento, fazimento, objetivos; implica em participação, confecção; exige envolvimento, construção. Esses procedimentos desembocam no comprometimento. Descompromissadas dessas tarefas, as crianças têm mais tempo para o lazer. Ligam a televisão, que assumiu o papel de contadora de histórias, diante da qual se rendem, numa postura estática.

Fazer uma casa moderna funcionar pode ser uma atividade absolutamente solitária. Tudo é realizado individualmente, até comer, pois cada membro da família faz sua refeição num horário diferente. Rarearam as tarefas compartilhadas. Antigamente, a maioria dos apelos do núcleo familiar privilegiava o interior das moradias: hoje, todo o apelo vem de fora.

Outra situação que nos impele à identificação com nossa trigo é a função social que exercemos através da nossa atividade profissional. Quantos adultos nos nossos dias realmente conseguem cumprir esse papel através de sua profissão? Os valores almejados são éticos e humanistas ou econômicos e materiais? São poucos os que mantêm viva a vontade de interferir, de transformar a sociedade no rumo do crescimento do ser humano.

Nossos jovens assistem a esse estado de coisas, com uma agravante: eles ainda estão sendo preparados para assumir esse papel. A escola, então, assume a função de ensinar à criança e ao adolescente valores como cooperação, aceitação do outro, respeito às diferenças, busca de uma conduta ética, são imprescindíveis. Porém, nosso sistema escolar, em geral, confirma o individualismo exacerbado que se vive em casa: grandes estruturas onde não há possibilidade dos alunos serem conhecidos como pessoas; classes com muitos alunos, onde quem fala é o professor, e os alunos são meros ouvintes; dinâmicas, encaminhamentos e avaliações que privilegiam a atuação do indivíduo; pouquíssimo tempo para convivência extra-classe; priorização exacerbada do papel informativo da escola sobre o formativo.

A ascensão do individualismo, que já se forjava na estrutura familiar, fica confirmada pela instituição escolar. Na base dele, aparecem a permissividade e a indulgência, respaldadas por conceitos errôneos sobre a natureza desses seres em formação.

A “criança”, ou “o jovem”, são entidades que não existem – cada ser é único, com suas potencialidades, suas limitações; uma criança não é frágil ou desprotegida em sua essência. Crianças são seres ágeis e flexíveis, pelos quais os adultos não precisam responsabilizar-se eternamente; em relação aos quais não se deve sentir culpa; por quem não se deve desenvolver o sentimento de superproteção; que não devem ser antecipadamente desculpadas pelo que fizeram de errado, ou poupadas de receber castigos. Crianças não devem, simplesmente, obter tudo que desejam, ou o que precisam. Devem lutar pelo que querem, mobilizar-se pelas suas conquistas, dar em troca do que recebem. O espaço dado (na casa), o conhecimento doado (na escola), não se enraízam, não permanecem, são pouco significativos, não foram compartilhados.

É possível desenvolver-se como pessoa, apenas recebendo, sem se doar, sem colaborar? Receber, sem dar em troca, violenta aquela noção primeira de fazer parte de um núcleo social desde que se nasce.

Quando uma criança só recebe elogios e nenhuma interdição por suas ações negativas, a arrogância, um sentido exacerbado do “eu”, passa a acompanhá-la; a noção de comunidade se esvanece. Quando se forma um agrupamento de indivíduos que receberam em casa a orientação do “Eu sou genial”, não se forma um grupo, forma-se uma gangue. A vontade de cada um é soberana, o desejo de cada um se sobrepõe a qualquer lei. Quando a idéia de convívio se enfraquece, o sentido fundamental do “nós”, que assenta as bases da moralidade, se dilui. O “eu” soberano queima índios, mata os pais, os diferentes. Ele pode tudo…

Há alguns conceitos bastante mal usados, nos nossos dias; um deles é o da individualidade. Fala-se muito em respeitá-la. Sinto, porém, que em muitas vezes está-se referindo, de fato, ao individualismo. Este, priva a pessoa do grande sentido do ser humano: a relação com o outro. Respeitar a individualidade, por sua vez, é respeitar a alteridade. O outro me torna indivíduo, eu me reconheço porque conheço o outro, eu construo minha trajetória no mundo incorporando o sentido das diferenças e semelhanças. Como coloca, brilhantemente, a professora Terezinha Azerêdo Rios, em seu texto “Ética e Competência”: “O bem coloca-se no horizonte da ação humana, das relações dos homens em sociedade. Quando mencionamos o bem, posso dar a ele diferentes nomes. Um deles, muito sério, é o de felicidade. A finalidade da ação humana é a felicidade. O homem age sobre o mundo e com ele se relaciona para ser feliz e proporcionar a felicidade. Esta felicidade que guarda em sua significação um caráter coletivo, é o bem com uma “adjetivação”- o bem comum.”

O professor Damon, em seu livro, ataca questões como a do culto da auto-estima, a da fragilidade infantil, a da eterna responsabilidade do adulto sobre a criança e a da omissão da escola na formação que, segundo ele, produziram uma geração de crianças ignorantes, apáticas, amorais. Sua proposta de mudança inclui cobranças, “feedbacks” claros às atuações dos jovens, recuperação das vozes da sociedade (pais, professores, etc.) e valorização desses modelos, construção de “pontes” entre a expressão da comunidade e os interesses e habilidades dos jovens, entre outras medidas.

A “Inteligência Emocional”, está na lista dos livros mais vendidos há um bom tempo… Por que não se pensar, nesta época de falência social, em traduzir a obra do professor Damon que trata da inteligência moral, da inteligência ética?

Terê Fogaça de Almeida
publicado na revista Viver Psicologia, nº 53 – junho de 1997

Comments are closed.