Um Basta à Indiferença – Propondo Novos Valores de Comportamento

Escola Ágora

Escola Ágora

“A indulgência é a forma mais polida de indiferença”
Abel Bonnard

A sociedade contemporânea assiste, entre perplexa e temerosa, a uma sucessão de transformações que ocorrem com tal rapidez que não nos permitem que elas se instalem em cada um de nós para decantar, para serem digeridas, compreendidas. Fica-se tomado por uma sensação de mal estar após a leitura de um jornal, ou ao se assistir aos noticiários da tevê.

Nas ruas, que percorremos sempre em guarda (o ladrão, o trânsito, a poluição), não nos chocamos tanto ao ver a criança miserável pedindo esmolas, o deficiente físico “costurando” o fluxo dos automóveis com sua cadeira de rodas. Estamos anestesiados – em parte, esse sentimento foi desenvolvido para dar conta de nossa sobrevivência. Porém, o episódio dos rapazes de Brasília (considerados pessoas integradas à sociedade), que queimaram o índio para “dar um susto nele, pensando que fosse um mendigo”, ou dos jovens americanos que mataram os entregadores de pizza “para sentir como era” ou, ainda, de filhos que viram notícias das páginas policiais porque mataram os pais, sob as mais diversas justificativas – de “ele era muito bravo”, passando por “ele me obrigava a trabalhar”, chegando a “ele não queria me dar dinheiro”, para não falar nos radicais que não aceitam as diferenças de raça ou crença, ou outras, causam em nós algo que vai além da perplexidade ou do temor. É evidente que alguns casos não podem ser tomados como comportamento generalizado – mas, não nos esqueçamos, que novos paradigmas não se apresentam de forma maciça, são situações isoladas, uma, aqui; outra, lá, que vão dando forma e encaminhamento às mudanças sociais. Os jovens, a quem sempre vimos como os construtores da sociedade futura, são os personagens centrais desses acontecimentos. Perdeu-se o sentido de comunidade? Esvaneceu-se o sentido de humanidade? Ou, estamos, apenas, mergulhados na era da indiferença, onde bem e mal, valores positivos e negativos, moralidade e imoralidade, o certo e o errado são apenas mencionados como recursos retóricos, mas a ação aponta para a dissolução e a amálgama desses conceitos?

Uma reflexão profunda se faz necessária, até para podermos reconfirmar nossa crença no ser humano, nossa vontade de que a juventude incline-se no sentido dos valores positivos, para dar outro contorno a este mundo caótico em que vivemos.

Para ajudar a iluminar a necessária reflexão sobre isso, há uma obra, ainda sem tradução em nossa língua, que me parece de grande importância. É “Greater Expectations – overcoming the Culture of Indulgence in America’s Homes and Schools”- que poderia ser traduzida como “Melhores Expectativas – Superando a Cultura da Indulgência nos Lares e Escolas Americanas” de William Damon. Damon é professor da Faculdade de Educação da Brown University, além de dirigir o Centro de Estudos do Desenvolvimento Humano, na mesma universidade.

Nessa obra, ele se contrapõe, de maneira clara e consistente, a alguns mitos da educação moderna. Partindo de uma fábula em que descreve um futuro bem próximo sem valores culturais, de relações hostis, Damon vai apontando e desmontando os enganos de nossa época, no que diz respeito à formação que se dá a nossos filhos e alunos e encerra seu livro com outra fábula, esta bem mais esperançosa, em que fala da recuperação desses valores, da reconstrução das comunidades, com base na cooperação.

Inspirada pelo trabalho do professor Damon e por minha experiência como educadora, farei algumas considerações que julgo relevantes, não para responder aos questionamentos da sociedade, ou para construir um receituário de maneiras de agir com nossos infantes ou adolescentes, mas, antes, para formular novas questões que auxiliem a elucidar nossas dúvidas.

Logo ao nascer, um bebê recebe sua primeira herança – o lar que o acolhe. A palavra herança, do latim “haerentia”, significa adesão. Isso quer dizer que essa criança foi recebida em sua primeira comunidade, à qual ela se uniu. Isso quer dizer que ela, no mesmo momento em que adentra essa casa, passa a viver uma relação dual, a conviver. Em seu processo de convivência, durante seu crescimento, ela passa a identificar-se, ou seja, ficar idêntica ao núcleo familiar ao qual pertence. Creio que esses poucos passos, que percorreram mais o caminho da etimologia que quaisquer outros já são suficientes para demonstrar a influência da família na formação do ser humano. Herança, adesão, união, convivência, identidade, são, portanto, valores fundamentais, básicos para o nosso reconhecimento como seres humanos. Até que ponto as famílias atuais têm dado conta de imbuir-se desses conceitos, de contaminar suas crianças e jovens com eles?

Há não muito tempo, neste mesmo século em que vivemos, era tarefa trabalhosa garantir o funcionamento de uma casa: simples atividades, como cuidar das roupas, demandavam tempo e várias etapas de execução. Isso, sem falarmos na limpeza, nas compras, na preparação da comida, que compreendia, não se esqueçam, o acendimento do fogo no fogão à lenha… As crianças, mesmo que muito pequenas e, ainda sem poder colaborar, já incorporavam a concepção do trabalho comunitário – várias pessoas realizando ações cujos resultados se revertiam em benefícios de todos. Quando atingiam idade para ajudar, começavam a fazer pequenas tarefas. Os momentos de lazer, vividos dentro de casa, convidavam à conversa, ao relato de histórias (muitas vezes, a da própria família). A dinâmica do lar era partilhada, então, através da comunicação entre as pessoas – tinha que ser assim. Não é meu intuito exaltar o passado e condenar o presente. Acho que fizemos conquistas importantes no campo da ciência, dos direitos humanos, do lazer. Porém, é inegável que a estrutura familiar veio se modificando, de maneira importante, ao longo dos anos.

Com o desenvolvimento da tecnologia, a “mágica” de apertar botões tomou o lugar dos demorados processos de execução das tarefas. Em que isso implica? Viver um processo supõe planejamento, fazimento, objetivos; implica em participação, confecção; exige envolvimento, construção. Esses procedimentos desembocam no comprometimento. Descompromissadas dessas tarefas, as crianças têm mais tempo para o lazer – o que fazem, então? Ligam a televisão, que assumiu o papel de contadora de histórias, diante da qual se rendem, numa postura estática. Fazer uma casa moderna funcionar pode ser uma atividade absolutamente solitária – das tarefas ao lazer, tudo é realizado individualmente, passando pela hora de comer, onde cada membro da família faz sua refeição num horário diferente. A capacidade ociosa das crianças e jovens aumentou, o sentido de fazer parte de uma comunidade diminuiu, à medida que rarearam as tarefas compartilhadas. O conceito de construir as condições necessárias para um lar subsistir foi substituído pelo consumir os benefícios oferecidos pela modernidade. Antigamente, a maioria dos apelos do núcleo familiar privilegiava o interior das moradias: hoje, todo o apelo vem de fora. Parece-me que a reflexão tinha espaço mais assegurado em tempos passados…

Libertados das tarefas comuns da casa, as crianças e jovens afastam-se do valor da cooperação, sentem-se menos parte de uma comunidade, desenvolvem mais o individualismo.

Outra situação que nos impele a sentirmo-nos identificados com nossa tribo é a função social que exercemos através da nossa atividade profissional – realizar um trabalho que favorecerá pessoas nos dá uma dimensão maior como seres humanos. Quantos adultos nos nossos dias realmente conseguem cumprir esse papel através de sua profissão? Quais são os valores almejados por nós? Éticos, humanistas? Ou econômicos, materiais? São poucas as pessoas que ainda mantêm viva a vontade de interferir, de transformar a sociedade no rumo do crescimento do ser humano. Nossos jovens assistem a esse estado de coisas, com uma agravante: eles ainda estão sendo preparados para assumir esse papel, ainda não concretizam, diretamente, ações transformadoras no seu grupo social. A escola, então, assume uma função da maior importância nesse aspecto: ensinar à criança e ao adolescente valores como cooperação, aceitação do outro, respeito às diferenças, busca de uma conduta ética, são imprescindíveis. Porém, nosso sistema escolar, com exceções, é evidente, confirma o individualismo exacerbado que se vive nas residências: grandes estruturas onde não há possibilidade dos alunos serem conhecidos como pessoas; classes com muitos alunos, onde quem fala é o professor, e os alunos são meros ouvintes; dinâmicas, encaminhamentos e avaliações que privilegiam a atuação do indivíduo; pouquíssimo tempo para convivência extra-classe (como se aprende a conviver?!); priorização exacerbada do papel informativo da escola sobre o formativo. A ascensão do individualismo, que já se forjava na estrutura familiar, fica confirmada pela instituição escolar. Na base desse individualismo, aparecem a permissividade e a indulgência, respaldadas por conceitos errôneos sobre a natureza desses seres em formação.

A “criança”, ou “o jovem”, são entidades que não existem – cada ser é único, com suas potencialidades, suas limitações; uma criança não é frágil ou desprotegida em sua essência. Crianças são seres ágeis e flexíveis, pelos quais os adultos não precisam responsabilizar-se eternamente; em relação aos quais não se deve sentir culpa; por quem não se deve desenvolver o sentimento de superproteção; que não devem ser antecipadamente desculpadas pelo que fizeram de errado, ou poupadas de receber castigos. Crianças não devem, simplesmente, obter tudo que desejam, ou o que precisam. Devem lutar pelo que querem, mobilizar-se pelas suas conquistas, dar em troca do que recebem. O espaço dado (na casa), o conhecimento doado (na escola), não se enraízam, não permanecem, são pouco significativos, não foram compartilhados.

É possível crescer no sentido mais amplo do termo, afastado do convívio social? Não me refiro a juntar um grupo e visitar o “shopping center”, falo de interação, de participação num projeto que beneficie a comunidade. É possivel desenvolver-se como pessoa, apenas recebendo, sem se doar, sem colaborar? Receber, sem dar em troca, violenta aquela noção primeira de fazer parte de um núcleo social desde que se nasce.

Quando uma criança só recebe elogios e nenhuma interdição por suas ações negativas, a arrogância, um sentido exacerbado do “eu”, passa a acompanhá-la; a noção de comunidade se esvanece. Quando se forma um agrupamento desses indivíduos, que receberam em casa a orientação do “Eu sou genial”, não se forma um grupo, forma-se uma gangue (a vontade de cada um é soberana, o desejo de cada um se sobrepõe a qualquer lei). Quando a idéia de convívio se enfraquece, o sentido fundamental do “nós”, que assenta as bases da moralidade, se dilui. O “eu” soberano queima índios, mata os pais, os diferentes. Ele pode tudo…

Há alguns conceitos bastante mal usados, nos nossos dias; um deles é o da individualidade. Fala-se muito em respeitá-la, nos cuidados para não feri-la. Sinto, porém, que em muitas vezes que esse termo está sendo usado, trata-se, de fato, do individualismo. Este, priva a pessoa do grande sentido do ser humano: a relação com o outro. Respeitar a individualidade, por sua vez, é respeitar a alteridade. O outro me torna indivíduo, eu me reconheço porque conheço o outro, eu construo minha trajetória no mundo incorporando o sentido das diferenças e semelhanças. Como coloca, brilhantemente, a professora Terezinha Azerêdo Rios, em seu texto “Ética e Competência”: “O bem coloca-se no horizonte da ação humana, das relações dos homens em sociedade. Quando mencionamos o bem, posso dar a ele diferentes nomes. Um deles, muito sério, é o de felicidade. A finalidade da ação humana é a felicidade. O homem age sobre o mundo e com ele se relaciona para ser feliz e proporcionar a felicidade. Esta felicidade que guarda em sua significação um caráter coletivo, é o bem com uma “adjetivação”- o bem comum.”

O professor Damon, em seu livro, ataca questões como a do culto da auto-estima, a da fragilidade infantil, a da eterna responsabilidade do adulto sobre a criança, a da omissão da escola na formação que, segundo ele, produziram uma geração de crianças ignorantes, apáticas, amorais. Sua proposta de mudança inclui cobranças, “feedbacks” claros às atuações dos jovens, recuperação das vozes da sociedade (pais, professores, etc.) e valorização desses modelos, construção de “pontes” entre a expressão da comunidade e os interesses e habilidades dos jovens, entre outras medidas.

A “Inteligência Emocional”, está na lista dos livros mais vendidos há um bom tempo… Por que não se pensar, nesta época de falência social, em traduzir a obra do professor Damon que trata da inteligência moral, da inteligência ética?

Terê Fogaça de Almeida

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