Alfabetização Social, Tarefa da Escola Contemporânea

 

Teus filhos não são teus filhos. São filhos e filhas da vida, anelando por si própria. Vem através de ti, mas não de ti. E embora estejam contigo, a ti não pertencem. Podes dar-lhes amor mas não teus pensamentos, pois que eles tem seus pensamentos próprios. Podes abrigar seus corpos, mas não suas almas, pois que suas almas residem na casa do amanhã, que não podes visitar sequer em sonhos. Podes esforçar-te por te parecer com eles, mas não procureis fazê-los semelhante a ti, pois a vida não recua, não se retarda no ontem. Tu és o arco do qual teus filhos, como flechas vivas, são disparados… Que a tua inclinação na mão do arqueiro seja para a alegria.

Khalil Gibran Khalil

Anos atrás, a Escola detinha, predominantemente, a função de transmitir conhecimento, tendo, até, “status” de espaço sagrado: “Templo do Saber”. Seus representantes, por conta desse destaque, eram respeitadíssimos em sua função social: os professores falavam em nome da instituição, disseminavam o saber e eram inquestionáveis em suas decisões.

Os alunos chegavam à Escola instruídos a estudar, aprender, respeitar e obedecer aos mestres.

Nas famílias, havia encontros com tios, primos, em vários graus, ou seja, crianças, jovens, adultos de idades diversas, encontravam-se sob um guarda-chuva que abrigava muitas diferenças, inúmeros diferentes.

A vizinhança era outro canal de experiências entre diversos – brincar na rua possibilitava frequentar casas com regras e costumes diferenciados das nossas, conhecer mães que pensavam e agiam diferentemente da nossa própria. Tinha-se, enfim, uma vivência que mostrava que se podia existir de outros jeitos…

Ao iniciar a vida escolar, então, já era claro, para a criança ou o jovem, que as pessoas pensam, agem e vivem de modo parecido, semelhante, diferente ou muito diferente. Dessa forma, a Escola caracterizava-se, para esse aluno, por ser o lugar onde os direitos e deveres devem ser iguais, o que significa dizer que o ingresso nessa instituição marcava a distinção entre vida pública e vida privada.

À medida em que os meios de comunicação foram adquirindo mais espaço na vida das pessoas, à medida em que a mulher colocou-se no mercado de trabalho, à medida em que cuidar das crianças passou a ser delegado a terceiros, à medida em que o tempo tornou-se mais reduzido e que a Internet popularizou-se, a sociedade começa a mudar, em velocidade e ritmo acelerados, num brusco movimento, sem rumo ainda nítido/visível.

Nas escolas, instituições outrora respeitadas, prevalece hoje a lei de mercado – afinal, o cliente tem sempre razão… Como se o cliente da Escola fosse o adulto, que já está formado e não frequenta o espaço escolar, não, seus filhos e filhas, os homens e mulheres do futuro, a quem a Escola deve atender! E, é óbvio que o cliente não tem sempre razão – primeiramente, porque ninguém tem sempre razão e, fundamentalmente, porque esse cliente é criança, é adolescente, está se formando, experimentando limites, preparando-se e sendo preparado para atingir suas potencialidades máximas mais à frente. O aluno é o investimento da sociedade (família e escola) no cidadão do futuro. Para formar-se bem, precisa de acolhimento, de orientação, de correção, de interdição.

Na vida privada, por sua vez, a convivência familiar veio se reduzindo a um núcleo muito restrito – pais, filhos, avós, se tanto. As brincadeiras de rua acabaram – o espaço da rua, onde se estava exposto às ocorrências da vida – trânsito, eventuais desconhecidos circulando pelo local, desapareceram.

O enfraquecimento do espaço escolar como a estreia do pequeno cidadão na vida pública, e, portanto, com regras, responsabilidades e funções bem diferentes daquelas que se conhecia no espaço privado – em casa, somos “o filho mais velho”, “o caçula”, “o do meio”, “o preferido da mamãe”, diluiu limites, esgarçou relações, empobreceu a experiência significativa.

Ao entrar na escola, as crianças traziam num mochila já recheada pelas percepções em relação à diversidade: quando crescer quero ser como meu primo, a tia fulana é muito impaciente comparada à tia beltrana, pela experiência no espaço público (brincadeiras de rua), pela consciência de que a escola seria um lugar muito diferente da sua “vida anterior”.

Essa vida anterior, porém, já trazia visões de mundo diversas, a observação e a aprovação/reprovação a posturas e atitudes plurais, uma projeção do que se gostaria de ser no futuro. Nas brincadeiras de rua, as crianças articulavam diferenças, criavam e compartilhavam regras, dividiam responsabilidades. O adulto era, sempre, referência, modelo. Olhava-se para ele como parâmetro de conduta, para o bem ou para o mal.

No mundo contemporâneo, o isolamento de cada um (meu celular, meu som, meu computador…), o pouco contato com o outro, a ausência de modelos a serem seguidos, a carência de um projeto social (quando crescer, quero mudar o mundo), a ameaça sobre o planeta, os valores éticos e morais em baixa, a excessiva exposição à mídia, a avalanche de estímulos, a perigosa parceria da violência com a libido (sofrer, ou, fazer sofrer, dá prazer…), o embrutecimento dos sentidos devem ser combatidos.

Se, atualmente, o diferente afasta, amedronta; se, hoje, crianças e jovens só vivem o presente – a história dos antepassados é pouco conhecida, as memórias do já vivido, escassas, e o projeto de futuro (quando eu crescer…), pouco arquitetado, há poucas raízes a serem desenvolvidas. Não se olha pra trás e não se sonha com o que vem pela frente?!

O adulto, de modo geral, não é mais sacralizado como pai (representando a lei, a interdição) e, tampouco, como mãe (amor, acolhimento); ele quer ser amado a qualquer custo, aqui e agora. Para isso, abdica da função, nem sempre cômoda, de educar (em latim, conduzir).

As crianças não têm oportunidade de desenvolver seus pequenos projetos: há tempos, tentava-se, perseverava-se, fracassava-se, repetia-se a tentativa, para, enfim, às vezes, conhecer-se o prazer da conquista. Ou, começar-se tudo novamente, num aprendizado que envolvia o corpo e a mente. A criança e o jovem atuais são soberanos ao apertar botões, “protegidos no seu quarto”, sentados, passivamente em suas cadeiras. Não enfrentam fracassos reais, mas, também são privados de experimentar sucessos concretos.

Em oposição à desunião e ao desencontro das famílias de hoje, o espaço da casa já foi ponto de convergência dos familiares; todos reuniam-se à mesa, onde havia negociação, aceitação, articulação, troca de opiniões, tolerância na ocupação do espaço, atritos, contendas, debates, que acabavam se acomodando, prevalecendo o sentido do bem comum. O fogão de lenha, a mesa da cozinha, o sofá da sala promoviam o encontro humano.

“O espaço onde ocorre o encontro humano o condiciona e o determina”. Santiago Barbuy

 Da sala ao quarto, da rua ao condomínio, ou ao “shopping center”, do “orelhão” ao celular, do restaurante ao “delivery”, cada vez mais nos blindamos da convivência com o outro.

“O medo tornou-se uma das paixões dominantes das sociedades democráticas: medo da velocidade, da costela de boi, do álcool, do efeito estufa, do tabaco, do frango, do microondas, do presidente americano, da periferia, da extrema direita etc etc etc.”

Luc Ferry, in “Famílias, Amo Vocês”

Por conta das transformações aqui abordadas, desde a família, a rua, a escola (como a porta de entrada, da criança na sociedade), essas também demandam mudanças nas suas funções.

A escola deve, no mundo contemporâneo, como uma de suas tarefas prioritárias, promover a alfabetização social.

Convivência entre alunos maiores e menores, troca de saberes e experiências entre eles, elaboração e desenvolvimento de projetos que envolvam o fazer físico, necessitam de tempo e espaço para acontecer.

Vinculum, do latim, deu “vínculo”, mas, também, “vinclo”, “vincro” e… “Brinco”, que deu “brincar”. “Brincar”, portanto, é estabelecer vínculos.

Construir – brinquedos, instrumentos, experimentos; fazer – experiências culinárias/científicas, preparar e cozinhar o próprio alimento; ouvir e contar – relatos verídicos sobre acontecimentos vividos na escola, histórias lidas por professores e alunos são ações que promovem conversas, discussões, combinados, remanejamentos, acertos. Ir “contra” a própria vontade em favor da ideia alheia é exercício precioso de descentração, num mundo onde a vontade própria é, em algumas situações exacerbadas, motivo de crimes…

“O que dá sentido à nossa existência, atualmente, refere-se à vida privada”. Luc Ferry, in “Famílias, Amo Vocês”.

 Saberes como usar tesoura, cola, amarrar cadarços, conhecer o nome dos alimentos viraram conteúdos a serem ensinados nas escolas, tanto quanto olhar no olho, dizer “bom dia”, “obrigado”, ou “por favor”.

Para os alunos mais novos, conviver e dividir tarefas com os alunos mais velhos é essencial para o reconhecimento da experiência do mais velho como facilitadora do trabalho e, para o adolescente, é fundamental o respeito ao menor, legitimando a criança que ele próprio, adolescente, foi há pouco tempo.

O homem do futuro não será, certamente, alguém com a cabeça cheia de informações e cercado de “gadgets” que o auxiliam na sua trajetória pessoal, social e profissional. O cidadão de amanhã deverá, sim, saber responder, mas, principalmente, perguntar, elaborar questões. Deverá, prioritariamente, saber reconhecer, no outro, um aliado, ou, pelo menos, um companheiro de jornada e, não, o adversário potencial… Deverá saber definir, mas, acima de tudo, decifrar, deslindar, descobrir. Criar é infinitamente mais importante que reproduzir, inventar é mais valioso que copiar.

Para tanto, a Escola deve ser espaço dinâmico, provocador, sintonizado e humanizado através da natureza e da arte, promotor de situações enraizadoras, transformadoras, que ressignifiquem o convívio humano como condição determinante de nosso bem-estar. Para fazer diferença, há que se fazer diferente. Para oferecer o que falta à sociedade, prerrogativa mandatória da boa escola, há que ampliar olhares, conhecer culturas, produzir conhecimentos, alargar mentes, suavizar corações, são conteúdos incontornáveis da boa e nova escola. Afinal, queremos formar cidadãos do mundo, ou, apenas, do quarteirão?

Terê Fogaça de Almeida

 

 

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